Um
dia, estava sentado lendo um jornal quando meu filho pequeno se aproximou.
-
Pai?
-
Diga, meu filho.
- É
que estou com um problema. Lá na escola, hoje, um amigo me provocou. Senti uma
vontade de bater nele, mas a professora disse que isso não era certo. Ela fala
que eu tenho que ser bonzinho, tenho que oferecer a outra face.
-
Continue, filho.
-
Sabe, eu até tento ser assim. Tem também o sermão do padre Sebastião, todo
domingo lá na Igreja. Deus quer que sejamos bons. Mas não entendo. Pai, às
vezes eu sinto que tem algo dentro de mim querendo explodir... Tenho medo do
que pode acontecer, do que pode sair de dentro de mim. Hoje, quando aconteceu
aquilo, até tentei me segurar, mas, sabe, sinto até um aperto na garganta. Às
vezes, até me dá dor de cabeça!
Eu,
que até então me mantivera atento, suspirei. Meu filho trazia uma questão muito
complexa, mas que eu mesmo havia passado há muitos anos atrás - mais ou menos
quando tinha a mesma idade do menino.
Deixando
o jornal na mesinha da sala, levantei-me de minha cadeira e, bondosamente, sentei-me
ao lado da criança, que brincava com alguns objetos no chão enquanto falava.
-
Olha, filho, quando tinha mais ou menos sua idade também tive uma dúvida muito
semelhante. E fui procurar ajuda com a pessoa mais sábia que eu conhecia: seu
avô.
O
menino ouvia atentamente.
-
Meu pai era uma pessoa muito simples, pena que você não teve tempo de
conhecê-lo. Pessoa da roça, não estudou. Mas tinha uma sabedoria gigantesca.
Procurei por ele, angustiado, pois sentia muita raiva do mundo e isso me levava
a fazer coisas... Coisas que ninguém aprovava... E ele, muito pacientemente, me
contou a seguinte história:
“Filho,
há muitas e muitas luas atrás eu estava aqui, na roça, matutando sobre algumas
coisas. Era muito moço ainda, mas já tinha idade pra querer saber das coisas...
E, num raro dia de folga, fomos eu e o Zé Preá, mais Aninha, pra areia da
praia... A gente se conhecia desde muito pequeno, sempre andávamos juntos... Só
queríamos mesmo tomar uma birita e prosear um pouco. Me lembro como se fosse
hoje. O Zé, todo faceiro, levava a garrafa de pinga que pegara escondido do pai
dele, proseando sobre tudo o que via. Hora falava do passarinho que cruzou a
trilha, hora falava de uma árvore cuja casca sua avó usava pra fazer remédio
pra curar ferida. A Aninha, menina muito bonita, usava uma saia rodada que a
deixava ainda mais linda. Sorria, ouvindo os papos do Preá e fazendo mais e
mais perguntas. Eu era o mais novo dos três, tinha muita coisa que aprender. Ia
em silêncio, admirando a beleza da Aninha e os conhecimentos do Preá.”
“Chegamos
à areia da praia ainda com o sol forte. Naquele momento não tinha ninguém lá, e
sabíamos que não haveria ninguém pelo menos até o dia da Padroeira. Então fomos
felizes, pois poderíamos ficar até muito mais tarde sem que ninguém nos
importunasse. Era a única coisa que os jovens podiam fazer por ali além das
quermesses da paróquia, então o pai e a mãe não se aborreciam, não. Toda a vila
de pescadores nos conhecia, ninguém poderia fazer mal nenhum pra gente.”
“Começamos
a contar histórias e a beber. Preá começou a contar as histórias que ele
conhecia, sobre o Saci e sobre a Cuca. Dizia pra Aninha que já tinha até
prendido o Saci numa garrafa com uma cruz desenhada na rolha. A pobre menina,
toda embasbacada, olhava pra ele admirada. E a gente continuou bebendo. Claro
que a Aninha não bebeu – moça direita não faz isso. Agora, eu e o Preá... Lá
pelas tantas, a gente não conseguia nem ficar de pé. Já tínhamos nos divertido
a valer, corrido pela praia, tomado banho de mar, tentamos até pegar uns peixes
com as mãos! Então tivemos que voltar, os pais com certeza já deviam estar
preocupados.”
“A
Aninha correu na frente. Eu e o Preá... Que vergonha! Mal conseguíamos ficar de
pé! A Aninha voltou, toda irritada, ralhou com a gente e disse, com aquela
vozinha esganiçada: ‘Vocês, viu! Vou ter que levar o Preá, que tá pior. Depois
eu volto e te pego! Vou num pé e volto noutro!’”
“Concordei.
Mesmo porque eu ainda queria ficar um pouco ali, em silêncio, vendo as
estrelas. Assim que eles se afastaram, cambaleei um pouco em direção ao mar e,
quando estava pertinho, deixei o corpo desabar. Comecei a tentar contar as
estrelas. Estavam tão lindas! De repente, porém, algo aconteceu. Vi uma luz
surgir de dentro do mar, e logo estava iluminando toda a praia. Achei que era o
boitatá. Mas não era boitatá, não. Vi um ser muito bonito sair de dentro da
água. Parecia uma pessoa, sabe? Só que toda feita de luz! Ele saiu e logo
começou a dançar uma dança tão bonita, que não pude deixar de ficar
impressionado. Dançou por algum tempo, sozinho. Então outra coisa ainda mais
estranha aconteceu. Outra criatura, também parecendo humana, saiu do mar.
Porém, ao invés de luz, parecia ser feito de trevas. Era escura, e eu sentia
medo só de olhar. Ela ficou parada por um instante, observando o ser feito de
luz. Achei que eles iam brigar!”
“De
repente, a criatura de luz se aproximou e tomou as mãos da criatura de trevas,
e elas começaram a dançar! Dançavam juntas, no mesmo ritmo, fundidas. Dançaram
tão maravilhosamente que pareciam feitas uma para a outra. Momentos depois
estavam juntas, fundidas em um só corpo, e, rodopiando, desapareceram no mar”.
“Pouco
depois a Aninha apareceu e me levou de volta à vila. Não acreditou na história.
Ninguém acreditou. Achavam que eu estava virando um contador de casos. Mas eu
sei o que vi, sei o que aconteceu e, naquele momento, algo mudou dentro de
mim”.
-
Seu avô me contou essa história pouco antes de partir. Eu a ouvi dele. E você
também vai passar para os seus filhos. É assim que tem que ser.
-
Mas, pai... Ainda não entendi... O que a visão do vovô tem a ver comigo?
-
Quer dizer, meu filho, que todos nós temos o bem e o mal dentro da gente. E não
adianta querer desaparecer com nossa essência. Temos que nos conhecer para
saber lidar com essas situações. Temos que ter consciência de quem somos para
poder ser realmente plenos. Ou um dia os nossos demônios podem aparecer do nada,
fazendo a gente fazer coisas realmente muito ruins.
Meu
pai nunca mais falou naquele assunto. Mas daquele dia em diante tratei de
tentar conhecer ao máximo cada pensamento – ruim ou bom – que passou pela minha
cabeça. E tenho certeza de que ao fazer isso tornei palpável para mim cada
demônio que eu guardava, e isso me ajudou a compreendê-los e a respeitá-los,
tornando-os meus companheiros, e não mais os meus rivais.
E,
desde aquele dia, eu nunca mais fui meu próprio inimigo...
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