segunda-feira, 20 de julho de 2015

A DANÇA

Um dia, estava sentado lendo um jornal quando meu filho pequeno se aproximou.
- Pai?
- Diga, meu filho.
- É que estou com um problema. Lá na escola, hoje, um amigo me provocou. Senti uma vontade de bater nele, mas a professora disse que isso não era certo. Ela fala que eu tenho que ser bonzinho, tenho que oferecer a outra face.
- Continue, filho.
- Sabe, eu até tento ser assim. Tem também o sermão do padre Sebastião, todo domingo lá na Igreja. Deus quer que sejamos bons. Mas não entendo. Pai, às vezes eu sinto que tem algo dentro de mim querendo explodir... Tenho medo do que pode acontecer, do que pode sair de dentro de mim. Hoje, quando aconteceu aquilo, até tentei me segurar, mas, sabe, sinto até um aperto na garganta. Às vezes, até me dá dor de cabeça!
Eu, que até então me mantivera atento, suspirei. Meu filho trazia uma questão muito complexa, mas que eu mesmo havia passado há muitos anos atrás - mais ou menos quando tinha a mesma idade do menino.
Deixando o jornal na mesinha da sala, levantei-me de minha cadeira e, bondosamente, sentei-me ao lado da criança, que brincava com alguns objetos no chão enquanto falava.
- Olha, filho, quando tinha mais ou menos sua idade também tive uma dúvida muito semelhante. E fui procurar ajuda com a pessoa mais sábia que eu conhecia: seu avô.
O menino ouvia atentamente.
- Meu pai era uma pessoa muito simples, pena que você não teve tempo de conhecê-lo. Pessoa da roça, não estudou. Mas tinha uma sabedoria gigantesca. Procurei por ele, angustiado, pois sentia muita raiva do mundo e isso me levava a fazer coisas... Coisas que ninguém aprovava... E ele, muito pacientemente, me contou a seguinte história:
“Filho, há muitas e muitas luas atrás eu estava aqui, na roça, matutando sobre algumas coisas. Era muito moço ainda, mas já tinha idade pra querer saber das coisas... E, num raro dia de folga, fomos eu e o Zé Preá, mais Aninha, pra areia da praia... A gente se conhecia desde muito pequeno, sempre andávamos juntos... Só queríamos mesmo tomar uma birita e prosear um pouco. Me lembro como se fosse hoje. O Zé, todo faceiro, levava a garrafa de pinga que pegara escondido do pai dele, proseando sobre tudo o que via. Hora falava do passarinho que cruzou a trilha, hora falava de uma árvore cuja casca sua avó usava pra fazer remédio pra curar ferida. A Aninha, menina muito bonita, usava uma saia rodada que a deixava ainda mais linda. Sorria, ouvindo os papos do Preá e fazendo mais e mais perguntas. Eu era o mais novo dos três, tinha muita coisa que aprender. Ia em silêncio, admirando a beleza da Aninha e os conhecimentos do Preá.”
“Chegamos à areia da praia ainda com o sol forte. Naquele momento não tinha ninguém lá, e sabíamos que não haveria ninguém pelo menos até o dia da Padroeira. Então fomos felizes, pois poderíamos ficar até muito mais tarde sem que ninguém nos importunasse. Era a única coisa que os jovens podiam fazer por ali além das quermesses da paróquia, então o pai e a mãe não se aborreciam, não. Toda a vila de pescadores nos conhecia, ninguém poderia fazer mal nenhum pra gente.”
“Começamos a contar histórias e a beber. Preá começou a contar as histórias que ele conhecia, sobre o Saci e sobre a Cuca. Dizia pra Aninha que já tinha até prendido o Saci numa garrafa com uma cruz desenhada na rolha. A pobre menina, toda embasbacada, olhava pra ele admirada. E a gente continuou bebendo. Claro que a Aninha não bebeu – moça direita não faz isso. Agora, eu e o Preá... Lá pelas tantas, a gente não conseguia nem ficar de pé. Já tínhamos nos divertido a valer, corrido pela praia, tomado banho de mar, tentamos até pegar uns peixes com as mãos! Então tivemos que voltar, os pais com certeza já deviam estar preocupados.”
“A Aninha correu na frente. Eu e o Preá... Que vergonha! Mal conseguíamos ficar de pé! A Aninha voltou, toda irritada, ralhou com a gente e disse, com aquela vozinha esganiçada: ‘Vocês, viu! Vou ter que levar o Preá, que tá pior. Depois eu volto e te pego! Vou num pé e volto noutro!’”
“Concordei. Mesmo porque eu ainda queria ficar um pouco ali, em silêncio, vendo as estrelas. Assim que eles se afastaram, cambaleei um pouco em direção ao mar e, quando estava pertinho, deixei o corpo desabar. Comecei a tentar contar as estrelas. Estavam tão lindas! De repente, porém, algo aconteceu. Vi uma luz surgir de dentro do mar, e logo estava iluminando toda a praia. Achei que era o boitatá. Mas não era boitatá, não. Vi um ser muito bonito sair de dentro da água. Parecia uma pessoa, sabe? Só que toda feita de luz! Ele saiu e logo começou a dançar uma dança tão bonita, que não pude deixar de ficar impressionado. Dançou por algum tempo, sozinho. Então outra coisa ainda mais estranha aconteceu. Outra criatura, também parecendo humana, saiu do mar. Porém, ao invés de luz, parecia ser feito de trevas. Era escura, e eu sentia medo só de olhar. Ela ficou parada por um instante, observando o ser feito de luz. Achei que eles iam brigar!”
“De repente, a criatura de luz se aproximou e tomou as mãos da criatura de trevas, e elas começaram a dançar! Dançavam juntas, no mesmo ritmo, fundidas. Dançaram tão maravilhosamente que pareciam feitas uma para a outra. Momentos depois estavam juntas, fundidas em um só corpo, e, rodopiando, desapareceram no mar”.
“Pouco depois a Aninha apareceu e me levou de volta à vila. Não acreditou na história. Ninguém acreditou. Achavam que eu estava virando um contador de casos. Mas eu sei o que vi, sei o que aconteceu e, naquele momento, algo mudou dentro de mim”.
- Seu avô me contou essa história pouco antes de partir. Eu a ouvi dele. E você também vai passar para os seus filhos. É assim que tem que ser.
- Mas, pai... Ainda não entendi... O que a visão do vovô tem a ver comigo?
- Quer dizer, meu filho, que todos nós temos o bem e o mal dentro da gente. E não adianta querer desaparecer com nossa essência. Temos que nos conhecer para saber lidar com essas situações. Temos que ter consciência de quem somos para poder ser realmente plenos. Ou um dia os nossos demônios podem aparecer do nada, fazendo a gente fazer coisas realmente muito ruins.
Meu pai nunca mais falou naquele assunto. Mas daquele dia em diante tratei de tentar conhecer ao máximo cada pensamento – ruim ou bom – que passou pela minha cabeça. E tenho certeza de que ao fazer isso tornei palpável para mim cada demônio que eu guardava, e isso me ajudou a compreendê-los e a respeitá-los, tornando-os meus companheiros, e não mais os meus rivais.
E, desde aquele dia, eu nunca mais fui meu próprio inimigo...


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